LEITE ARTIFICIAL - SOLUÇÃO OU CARRASCO EM PAÍSES DESFAVORECIDOS?

LEITE ARTIFICIAL - SOLUÇÃO OU CARRASCO EM PAÍSES DESFAVORECIDOS?

Quantas vezes, em projetos de recolha de alimentos e bens essenciais para populações carenciadas, seja permanentemente em países desfavorecidos, seja mais ocasional, em países em guerra que geram refugiados, não aceitam leite artificial?


Acredito que seja doado com a melhor das intenções pelas pessoas comuns, como nós, mas sabias que estás a oferecer uma arma mortífera equivalente às bombas de que são alvo ou à fome por que passam?


Nos países desfavorecidos e em cenários de guerra não há água potável disponível para a preparação da fórmula infantil, como existe em nossa casa. O que acontece é que a água usada por estas famílias está contaminada e é oferecida, vezes e vezes sem conta, a um bebé que ainda nem defesas tem para se proteger seja do que for.


Os bebés apresentam infeções, diarreias agudas e acabam por morrer devido à desidratação provocada. O seu estado de desnutrição não ajuda na recuperação clínica, nem a ausência de proteção imunológica passada pela mãe, pois esta é aconselhada a não amamentar.


O leite artificial usado nestas condições perde todo o seu propósito, e aumenta o seu potencial risco que não vale a pena nenhum bebé correr. Transforma-se no carrasco destes bebés. O leite artificial não deve ser, de todo, uma opção nestes contextos, pelo simples fato de não ser seguro.


OS TIGRES E AS SUAS PRESAS


O filme “Tigers”, de 2014, é baseado na história verídica de Syed Aamir Raza, um vendedor de leite artificial que, ao descobrir as consequências da substituição da amamentação materna pela fórmula infantil, decide denunciar e lutar contra o marketing abusivo das grandes companhias multinacionais.


Nesta narrativa ficcional, Ayan, um jovem paquistanês trabalha para uma empresa produtora de fórmulas infantis - Lasta – promovendo a marca entre médicos no Paquistão, de forma bastante incisiva. Por um lado, fá-los acreditar que o leite artificial é o melhor alimento para estes bebés já de si desnutridos devido ao contexto socioeconómico em que estão inseridos; e por outro lado são distribuídas recompensas materiais para que o produto seja prescrito ao maior número possível de bebés.


Contudo, Ayan depara-se com o efeito devastador do seu trabalho que tanto orgulho trouxe para a sua família: os bebés que se alimentavam com o leite artificial adoeciam e, devido à diarreia, infeções e desnutrição, acabavam por morrer.


É incluído, também, numa breve passagem do filme, o caso real de uma mãe paquistanesa que alimentou os seus filhos gémeos de forma diferente. Amamentou um deles, que prosperou saudável. Ofereceu leite artificial ao outro, que acabou por morrer decorrente destas complicações.

Os valores morais e éticos do vendedor acabaram por ganhar e decidiu denunciar a sua antiga empresa, iniciando um conflito que atravessou fronteiras e nos deu a conhecer esta brutal realidade.


O título “Tigers” (tigres) está relacionado com a forma como os vendedores eram motivados na empresa. Deveriam ser insistentes e implacáveis com as suas presas, os médicos prescritores do leite artificial nos hospitais do Paquistão.


Através deste filme é evidenciada uma triste realidade que persiste nos países em desenvolvimento, até aos dias de hoje. A permanência de empresas como esta gera um problema grave de saúde pública. Famílias com baixos rendimentos, baixa alfabetização, baixa literacia em saúde e sem acesso adequado a saneamento básico, deixam de amamentar em detrimento do uso de leite artificial.


As cenas são reais e chocantes. É uma dolorosa chamada de atenção para como as coisas funcionam por trás das grandes propagandas sedutoras de marketing. “Tigers” traz-nos imagens reais de 2013, no Paquistão, mas 10 anos depois a realidade mantém-se, um pouco por todo o mundo.


O filme foi dirigido pelo diretor vencedor do Óscar, Danis Tanovic. Após denunciar as práticas abusivas da multinacional onde trabalhava, Syed Aamir Raza (interpretado por Emraan Hashmi) continua a proteger, a apoiar e a promover a amamentação. Publicou, pela The Network (Paquistão) o “Milking Profits: How Nestlé puts Sales ahead of infant health”, no qual denuncia as práticas da Nestlé para promover a fórmula infantil.


Todos os profissionais de saúde deveriam assistir a este filme e ler este relato. Mesmo que muitos atuem em contextos sociais mais favoráveis, a prática profissional encontra-se muito distante da promoção, do apoio e da proteção da amamentação desejada. O desmame precoce dos bebés continua a ser fortemente incentivado na nossa sociedade.


INDÚSTRIA IMPIEDOSA


Se na nossa sociedade, em que é fácil aceder à informação e averiguar a sua veracidade, a indústria do leite artificial já faz uma esmagadora lavagem cerebral, imagina neste contexto desfavorecido, em que a maioria das mães são analfabetas e não têm alternativas na procura de qualquer outra informação e atuação para os seus bebés? Confiam no carrasco que acaba por matar os seus bebés, quando a fonte de saúde e proteção são elas próprias, é o seu leite.


No passado, a probabilidade de sobrevivência estava relacionada ao aleitamento materno ou à sua substituição pelo leite de uma ama. Caso isso não fosse possível, os bebés eram alimentados com leite animal, alimentos pré-mastigados ou papas pobres em nutrientes e contaminadas, que contribuíam para elevados índices de mortalidade. (Castilho; Filho, 2010)


A primeira fórmula à base de leite de vaca foi criada em 1867, pelo químico alemão Von Liebig. (Lopez; Juzwiak, 2003) Com a Revolução Industrial, as mulheres, que costumavam amamentar, foram trabalhar nas fábricas, motivando a busca de alternativas alimentar os seus bebés na sua ausência. O consumo de leite animal e fórmula artificial, bem como a introdução precoce de alimentos comprometeram a saúde das crianças. A indústria, visando o lucro, desenvolveu fórmulas modificadas, investiu em propaganda, e a sociedade reagiu com um movimento de incentivo ao aleitamento. (Castilho; Filho, 2010)


Atualmente, a indústria impiedosa das fórmulas infantis precisa, claramente, de regulamentação nacional e internacional. Economicamente representa valores astronómicos, transformando-se num grande monstro capitalista.


Não te enganes: o marketing agressivo não ocorre apenas em países desfavorecidos. Acontece principalmente nas sociedades desenvolvidas, consciente e inconscientemente nos meios de comunicação e na comunidade de profissionais de saúde. O que ressalta é que, a importação do nosso hábito “mais evoluído” de desvalorizar a amamentação, em situações não seguras como estas, traz ao de cima, de forma bastante cruel para estas famílias, a evidência de que o único leite que fornece proteção imunológica ao bebé é o leite materno.


As vantagens do leite materno são cientificamente reconhecidas, e a Organização Mundial de Saúde recomenda o aleitamento exclusivo de leite materno até aos 6 meses, complementado com outros alimentos a partir dessa idade, e até, pelo menos, aos 2 anos. A alimentação infantil, natural ou artificial, sempre foi determinada e condicionada pelo valor social e cultural atribuído à amamentação.


Terça-feira, 23 de Maio de 2023

© 2023 – Ana Rita Monteiro – Todos os direitos reservados

Desenvolvido por LCD