Podes dizer-me que o foco da consultora é ajudar a que a mãe consiga, de fato, amamentar. O ideal seria isso mesmo, mas o principal papel da Consultora é ir ao encontro do que mais fizer sentido para a mãe que acompanha.
Isso pode significar, na prática, um aleitamento misto de leite materno e leite artificial, um processo de relactação, uma real necessidade temporária de oferecer leite artificial ao bebé. Enfim. O que quero passar em primeiro lugar é que a consultora deve estar atenta e informada sobre o leite artificial. Por vezes é algo a retirar da rotina da mãe, outras vezes é um instrumento benéfico a usar. Por isso devemos falar dele.
Tantas são as vezes que a mãe sai da maternidade com a indicação de oferecer leite artificial ao recém-nascido e/ou com a lata já comprada pelo pai cá fora? Agora pensa comigo.
a) Que quantidade de leite artificial foi preparado ainda na maternidade ou que quantidade foi indicada para os pais prepararem em casa? Na maioria das vezes, essas quantidades variam de 30 a 60 ml. Retém esse valor na tua mente.
b) No geral, uma medida da colher doseadora serve para preparar que quantidade de produto final? 30 ml de leite artificial.
c) E qual a capacidade gástrica do recém-nascido nos primeiros dias? Ronda os 20 ml, mas em cada mamada é fisiologicamente normal que não ingira essa quantidade na totalidade. Ele sente fome pela primeira vez, usa a boca para se alimentar pela primeira vez, experimenta uma alimentação intermitente (em vez de contínua) pela primeira vez. São muitas estreias em simultâneo e a Natureza teve isso em conta, criando mecanismos para uma transição gradual.
Então porque os valores de 30 ml (e múltiplos de 30 ml) são dados aos pais como recomendação? Porquê esta indicação de oferecer mais quantidade de leite artificial que o bebé realmente precisa? Se a capacidade gástrica do recém-nascido é menor que esses 30 ml, porque se continua a insistir?
É verdade que muitos profissionais de saúde não se especificam na área da amamentação e acabam por dar a indicação de que o bebé precisa de leite artificial nestes primeiros dias. São poucos os casos em que, após avaliação detalhada é, realmente, necessário fazê-lo. No primeiro dia de vida não existe necessidade de oferecer leite artificial. O que o bebé precisa é de tempo para se adaptar. Tempo é a palavra-chave!
Indirectamente, a unidade da colher doseadora da maioria das marcas (1 colher = 30 ml de leite artificial) contribui para a tendência de oferecer mais leite do que o bebé realmente precisa. A quantidade de leite artificial a ser reconstituído com determinada quantidade de água é uma informação importante fornecida pelo fabricante, que vem na própria embalagem do produto. É essencial para chegar à concentração correta da formulação e deve ser respeitada, evitando que o leite fique demasiado diluído ou demasiado concentrado e não afete a nutrição e saúde do bebé.
Contundo, para além disso, no rótulo da lata também indica que quantidade de leite artificial se deve dar ao bebé. E esses volumes indicados são muito maiores do que a ingestão média de um recém-nascido de poucos dias. Será correto que quem anuncie a quantidade de leite que o bebé deve ingerir seja a mesma entidade que vai lucrar financeiramente se o bebé comer mais? As palavras “conflito de interesses” surgem-te no pensamento? Não és a única.
É verdade que a advertência de que a quantidade de leite artificial que se deve oferecer ao bebé varia com a sua idade, as suas necessidades individuais, com o tipo de leite artificial e com as orientações do pediatra. Mas voltamos aqui ao ponto já referido anteriormente da falta de formação específica na área da amamentação que, cada vez mais, se encontra nos profissionais de saúde intervenientes na vida destas famílias (pediatras, médicos de família ou enfermeiros especialistas). Acabam por se guiar por estas “cábulas” da indústria e indicar posologias desajustadas para quem quer amamentar o seu bebé e para os quais o leite artificial deveria ser apenas uma (preciosa) solução temporária.
Em traços gerais, é referido dar 30 a 60 ml de leite artificial ao recém-nascido a cada três horas. É essencialmente isso que se indica e é essencialmente isso que fica retido no cérebro privado de sono e exausto dos recém-pais. Para além da quantidade não estar ajustada individualmente ao peso do bebé (os recém-nascidos não pesam todos o mesmo, então porque têm que comer as mesmas quantidades), o intervalo de tempo em que deve ser oferecido não deve depender do relógio, pois se a mãe fizer um aleitamento misto (leite artificial e leite materno) ou pretender oferecer o seu leite ao invés da lata, essas três horas não são assim tão taxativas. É preciso trabalhar este ponto com a família.
Os bebés não são todos iguais, não são máquinas de engorda, porquinhos para encher. Há momentos em que têm mais fome e em outros menos, tal como nós. Mas são demasiadas as vezes que nos chegam bebés sobrealimentados com quantidades exageradas de leite artificial. Sem entrar na parte das consequências disso a curto, médio e longo prazo, esta oferta excessiva de leite artificial é completamente prejudicial para quem quer amamentar, e os pais não têm noção disso.
A médio e longo prazo o resultado é o que assistimos muitas vezes nos nossos acompanhamentos: bebé empanturrado com leite artificial até às orelhas, dorme longas horas para alegria e descanso dos pais, o bebé não dá sinais de fome, não vai à mama, surgem situações de ingurgitamento mamário e mastites, não há estimulação adequada na mama, a produção de leite materno diminui, e começa o desmame precoce sem que seja esse o desejo da mãe. Resumi muito? A indústria e as práticas do leite artificial também.
Pode parecer claro para toda a pessoa que não é mãe ou pai do bebé que acabou de receber neste mundo; mas para eles, num momento mais vulnerável das suas vidas, em que passam por tantas emoções e circunstâncias desafiantes ao mesmo tempo, não é tão fácil assim ter a clareza de raciocínio de que esses 30 ml podem não ser a unidade básica de leite que o seu bebé realmente precisa nos primeiros dias de vida, e que as quantidades de leite artificial que estão a oferecer são exageradas. E acredita que a indústria tem os sentimentos do público-alvo em consideração para aumentar os seus lucros.
Como consultora achas que este tipo de informação e a regulação da sua comercialização impactam de forma negativa o percurso de amamentação das famílias que desejam amamentar?
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